Sua filha também é filha do seu marido, neta da sua mãe, sobrinha da sua irmã, do seu cunhado, vizinha do seu vizinho, afilhada dos padrinhos dela, prima dos seus sobrinhos, "sobrinha" dos seus amigos, trabalho da sua babá, cliente do seu padeiro - e até neta da sua sogra ela também é! (=
Que me perdoem a obviedade (e a alfinetada na sogra...), mas sinto que o real significado desta simples constatação aí em cima pode demorar séculos pra se evidenciar pra gente. E, até lá, muita neura pode pintar.
Conversando outro dia com uma amiga, ela disse um negócio muito bonito que eu até já tinha tido a sensação e ouvido do pai, mas ainda não tinha conseguido eu mesma botar em palavras. Algo mais ou menos assim, que se ela acreditava mesmo que sua filha era, mais que sua filha, filha da vida (e ela acreditava), a decorrência lógica é que todo o mundo, em maior ou menor grau, compartilhava com ela um pouco da responsibilidade pela filha e, mais, do direito de tê-la ocupando o espaço dela em sua vida. E a gente, mãe, tem que permitir isso; não só permitir mas, enquanto se tratar de uma menininha sem muita vontade própria, incentivar, promover mesmo.
Pode parecer exagero imaginar quem assim não haja, mas não é. É muito comum a gente tomar o filho pra si e passar a tratá-lo como um seqüestrado, mediando o contato dele com o mundo inteiro com um cuidado pra lá de excessivo.
Muitas razões pra isso: falta de confiança nos outros, vontade (e pretensão) de protegê-lo de tudo, ciúmes, possessividade etc.
Comigo aconteceu um pouco disso. E o meu problema - vai entender - era pena. Bastante esquisito. Eu me pegava morrendo de pena de todos que dividiam comigo a lida com a Manú. Começava, claro, pelo pai. Eu deixava os dois sozinhos e já começava a pensar: "coitado, ela vai chorar! E ele não vai saber o que fazer! E vai ficar angustiado, cansado, deprimido até! Ai-meu-deus, deixa eu ir logo com esse banho!". De madrugada, quando ele não acordava espontaneamente, eu nem cogitava acordá-lo - "coitadinho, deixa dormir, já basta eu exausta!". (Um parêntesis aqui. Essa coisa de afastar o pai da história é bastante comentada. Mas sempre se diz que o motivo é achar que ele não vai fazer as coisas tão bem quanto você. No meu caso, juro, ao menos conscientemente, não era nada disso. Aliás, minha auto-estima como mãe demorou tanto pra se erguer que eu sinceramente achava que quase qualquer outra pessoa ia saber cuidar dela melhor do que eu. Eu tinha era essa coisa de ter pena.)
E não era só dele. Da minha mãe. Só deixava a Manú com ela se estivesse dormindo e eu tivesse razoável certeza que ia continuar assim enquanto eu não voltasse. Da babá. Paga pra isso, acostumada com a coisa e distanciada emocionalmente. Mesmo assim, vivia saltando uns "coitada!" na minha cabeça quando deixava ela correr na minha frente pra acudir um choro.
Não é tão difícil de entender o processo: eu devia era estar morrendo de pena de mim mesma e essa pena transbordava sendo projetada nos outros. Ok. Fácil de ver; difícil é mudar.
Um dia o pai me falou: você tem que pensar que as pessoas também têm o direito e a "obrigação" de experimentar a Manú e ter com ela as suas próprias ondas. É nossa filha, mas é também a netinha da sua mãe, do meu pai, do seu pai, sobrinha da sua irmã etc. Se ela está com eles e chora, não dorme, fica doente, dá trabalho, eles têm que tirar deles próprios um jeito, só deles, de consolá-la, de brincar com ela, de cuidar dela. Mesmo que seja com a melhor das intenções, você não tem o direito de negar isso a eles e, especialmente, a ela. É a construção da relação deles, que nada tem a ver com a gente, que está em jogo.
Verdade. É engraçado perceber que essas pessoas realmente têm seu próprio interagir com ela e às vezes pensam e fazem coisas maravilhosas que dão super certo e que, mesmo eu, que fico matutando sobre ela e seu comportamento o tempo todo, não tinha ainda atinado. E, quando nada, eles trazem pra ela o frescor de quem não está com ela o tempo todo, o que a embanha em energia boa. Ótimo pros dois.
O fato é que a vidinha de nossos bebês já são tão facetadas quanto podem ser as nossas. Eles já têm seus próprios papéizinhos no script da vida de uma porção de gente. E temos a responsabilidade (mais uma) de propiciar clima pra que isso se desenvolva! A experiência humana sadia é sempre múltipla, vária. A vida que se resume muito (numa pessoa, num ambiente, num papel só) empobrece perigosamente.
ps: Na foto Manú e parte de sua tchurma.